sábado, 18 de novembro de 2017

Todas as Datas do Mundo

Era 29 de Dezembro de 1969 quando cheguei naquela rodoviária novinha. Cheiro de tinta fresca, concreto claro e nenhum centímetro quadrado de fuligem. Antes mesmo de descer do ônibus eu te vi. Esperta, pessoa baixinha esperta. Me esperou no degrau mais alto da escada que liga o desembarque com a plataforma. Dessa forma nosso primeiro contato naquele dia seria com ela do topo, como alguém da realeza recebendo um súdito. E, num gesto nobre, ela segurou meu rosto com as duas mãos e me deu um beijo, segurando meu rosto como se fosse um presente que chegou. Era então Abril de 2016.

Mas já havia passado a ser 6 de Setembro de 1954 quando atravessamos o túnel, com aquelas paredes de entrada tão brancas de novas, brasão da cidade no meio. O túnel era também um túnel do tempo, e dentro dele eu deixei o asfalto e o carro de lado e fui sentindo seu cheiro e sua pele tão branca que brilhava pra mim. Ela era meio neon em pleno 1954.

No nosso prédio o tempo se perdia um pouco. Era 1920 na fachada, um toque de 1940 de um corredor em obras no interior e tinha certeza que era 2005 quando liguei o ar condicionado split na tomada, mas logo depois disso pisei em uns tacos soltos do chão e já era 1917 de novo. A.C..

Mas nada disso importava quando em 1996 aquela TV de tubo insistia em pegar uns canais chuviscados de TV fechada e ela, nua, insistia em discutir comigo que tanto nos filmes quanto nos livros foi o Rabicho que matou o Cedrico. Eu tinha certeza que no livro o próprio Voldemort matava o Cedrico. Ela tinha certeza que eu estava errado, e jogava em mim uma arrogância de um conhecimento de causa que até eu duvidei de mim mesmo. “Se diz fã e fala uma dessa, que absurdo!”. Ela sorria o mais gostoso dos sorrisos, o sorriso da vitória, da superioridade. Eu apenas disse que tinha certeza e ela foi para 2008 pegar o smartphone e achar no Google um link que compilava todas as diferenças entre livros e filmes. E sim, nos livros era o Voldemort que matava o Cedrico.

Ela não se conformou. Eu ainda estava errado, o site estava errado, a própria J.K. Rowling em pessoa estava errada. Só ela correta. Só ela me olhando por cima dos óculos quando eu apenas declarei  “Eu disse” e ela fechou a cara. A mais bela cara fechada do mundo, quero muito mais daquela cara fechada. Virou 26 de Junho de 1997, lançamento da Pedra Filosofal, quando eu disse “Hermione”. “Que?”. “Hermione. Se você não quer que minha filha seja Maria Alice, tem que ser Hermione”.

Virou Junho de 2009, ou Julho, ou Agosto, enfim, mas era 2009, quando atravessou o quarto, nua, e vestiu minha camisa e a fez parecer completamente nova, como se eu tivesse acabado de ganhar em 2009. Eu tinha 15Kg a mais quando ganhei, até em mim está gigante. Nela virou um vestido, um vestido muito largo porém meio curto que me deixava ver toda suas coxas. Aquelas coxas que brilhavam nos meus olhos, forçavam o joelho no colchão e após jogar o corpo na horizontal vinham diretamente subir na minha perna e se aninhar. Aquele cadeado chamado coxa, um pouco dobrada, por cima da minha própria. Petrificus Totales, não é pra sair do lugar.

Logo depois já tínhamos ido para 1990 quando o cara que estava fazendo a obra assobiou uma melodia que não consegui identificar, mas parecia a música de abertura do álbum daquele ano d’Os Mulheres Negras. E aproveitando a década eu tropecei e caí de cara em 1993 e as lembranças do meu primeiro amor infantil, impuro, quando ela me contou porque terminou com o cara anterior. Eu fugi correndo com a desculpa da caixa d’água, de 1956, que insistia em não ter água.

Era 2013, quando eu comecei a descobrir minha coragem, e eu dei os passos firmes escada acima. “Eu gosto de você. Muito. Você é especial. Eu não estaria aqui hoje nesse microcosmo perdido no espaço-tempo se não gostasse de você. Para de esconder o rosto, encara o que eu to te dizendo”.

“Moça, é o seguinte, eu te amo”. Mas já era 12 de junho de 2016 quando eu disse isso. Ela já dormia um sono espamático, pesado, um torpor vampiresco. Afinal, nunca foi tão 2013 assim. Atravessei eras no dia seguinte.  A partir de 17 de Outubro de 2001 mergulhei entre línguas, dedos, unhas e cabelos. Só não fui pra década de 1960 porque o museu do estádio estava fechado.

Quando eu fui embora, era 30 de Dezembro de 1969. A rodoviária já não era tão nova. Passei rapidamente por Maio de 2016 dizendo “Tchau, idiota”. E embarquei. Subi. O motor ligou e eu já estava de novo em algum outro dia que eu nem mais sabia dizer qual.

Eu nem sei mais que dia eu sou.
Mas te amo o calendário inteiro.

domingo, 23 de julho de 2017

Teoria do Lateral Esquerdo


Dia desses eu estava no carro de um amigo dos tempos da Faculdade de Comunicação. Voltávamos de uma reunião em São Gonçalo. Tinha uma ideia para ativar a marca de uma rede de lá, lembrei que esse amigo era especialista nesse setor e chamei para montar o projeto comigo.

Fomos e voltamos conversando sobre o ponto que nossas vidas estavam. Eu comentei da minha total apatia e estagnação, tanto profissional nesse mercado de crise quanto amorosa. Ele foi contando também da vida dele e dos problemas e neuras. E foi ali, na Niterói-Manilha com a garagem da 1001 de um lado e ironicamente com o Estaleiro Esperança do outro que desenvolvi num estalo, em um par de sinapses e um punhado de falas do colega, uma teoria que agora tentarei compartilhar com vocês. Chama-se Teoria do Lateral Esquerdo e de como eu me encaixo totalmente na minha própria teoria.

Para os mais novinhos é preciso explicar que o Futebol é tipo um League of Legends offline, mas em ambos os esportes cada jogador de um time tem uma função específica. Nem todo mundo precisa fazer gol, isso é uma função do time em si, ok, mas o atacante tem essa responsabilidade. O Lateral Esquerdo não.

O Lateral é uma função meio ingrata no jogo. Ele tem que saber defender para ajudar os zagueiros, dar cobertura aos volantes, criar opções para os meias e cruzar para os atacantes. O Lateral é o que tem que entender um pouco de todos os fundamentos, se a bola caiu no canto dele é responsabilidade dele resolver, seja ataque ou defesa.

E citei lateral esquerdo porque canhoto sempre é um pouco mais raro de acontecer. Logo um bom lateral esquerdo é um artigo valioso, peça importante e que desequilibra qualquer elenco. Só que sempre tem um porém.

O Lateral Esquerdo pode ser amado, idolatrado e ganhar alguma rebarba de sucesso, isso é verdade. Mas quem fatura milhões de Euros anunciando shampoo contra Caspa não é o Lateral Esquerdo, é o Atacante. E no meu atual/último relacionamento e na minha recente fase profissional eu vivi essa experiência sofrida e ingrata que é ser lateral esquerdo.

Passei uma noite com Veronica e me apaixonei. Sim, sim, trouxa, eu sei. Mas calma aí, a história não acabou, não é tão simples assim. Já havia uma relação sexualmente tensa a mais de um ano, muitos desencontros e tal. Quando a gente se viu foi um misto de sorte de oportunidade, impulso da parte dela e burrice extrema da minha de saber que iria fazer papel de trouxa.

Mas o fato é que antes e depois desse encontro já havia no meu celular diversas mensagens de "você podia estar aqui". "Netflix, edredom e você". Ou seja, nem tudo era exclusivamente sexual. Guarde essa informação, será útil mais à frente. E eu, eterno canceriano com mais de 3 anos solteiro e acumulando decepções atrás de decepções, deixei a portinha aberta.

Mas o fato é que Veronica me curtia, de verdade, mas não o bastante para bancar um relacionamento. Esse limbo é cruel. É aí que entra a Teoria do Lateral Esquerdo. Eu constantemente ouço (e vejo que é verdade) que desempenho um papel legal na vida dos outros. Em suma, eu me vejo sim como aquele titular absoluto. Mas nunca, never, jamé, niet eu tenho ou desperto a habilidade necessária para vestir a 10.

Não foi a primeira vez e certamente não será a última. Eu vejo isso acontecendo em tantos ramos da minha vida que eu nem sei mais contar. Das diversas seleções de emprego que nunca fico na primeira fase, mas nunca passo. Dos diversos projetos que sou chamado pra dar pitaco, mas nunca para conduzir. A minha onda tem sido esse quase. E a sensação depois de mais de três décadas disso é que todo esforço é inútil. A sensação é eterna de que vou nadar, nadar e vencer o mar sim, porém morrer na praia.

Aquela pessoa que gostam de olhar o Instagram e dizer "que homão/mulherão da porra", "tá gato(a)" etc e rir do que a pessoa fala no Facebook, na mesa de bar dizer que é inteligente e tal, mas que ninguém banca aparecer de mãos dadas na rua. E além disso, a galera do "você é gato" morre de medo de pesar o mesmo que essa pessoa.

Veronica bota a culpa nela mesma, que não é um relacionamento que ela quer no momento. Isso é uma meia verdade. O que a BR-101 inteira sabe é que se aparecer alguém que ela queira se relacionar ela vai e pronto. Não é questão de momento, é questão de ser quem sou mesmo. Uma das últimas coisas que falei pra ela foi isso e como resposta tive o silêncio. Talvez nesse momento isso já esteja acontecendo.

Aquela coisa de se esforçar até dar certo, tem que tentar vamos lá etc etc etc tem limite. É preciso se esforçar sim, mas é preciso entender que uma hora ou outra vamos dar murro em ponta de faca. Quem planeja vir aqui dizer que uma hora vai acontecer por favor nem faça isso, porque tudo, sentimentalmente ou profissionalmente, está regredindo.

Lembra daquela história que eu disse que não era só uma relação sexual? Pois é, o que aconteceu é uma falta de responsabilidade afetiva absurda, e que ainda foi transformada em auto ilusão da minha parte. Eu me sentia bem apaixonadinho, ficava feliz do celular apitar e aparecer o rosto dela, correr para pegar o fone.

Mas a lição que ficou desse meu relacionamento e das últimas aventuras profissionais é essa, é o que eu e muita gente por aí precisa aceitar é que é isso mesmo, tem gente que nasce pra lateral esquerdo. 

E tem gente que fatura vendendo shampoo anti caspa.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Roteiros



Os católicos estavam certos o tempo todo, nosso destino é realmente determinado pelo divino antes de nascermos. O que pouquíssima gente sabe é que até chegar a uma versão final do que acontece são necessárias várias reuniões.

E os assuntos são decididos por santos diferentes, cada um na sua área. Por exemplo, um tempo atrás Santo Antônio e sua equipe estavam no Gabinete de Relações Carnais, GRC, que fica dentro do DGT, Departamento de Gestão Terrena. Eles estavam decidindo como seria a história de duas pessoas.

Parece trabalho demais para só duas pessoas no mundo, mas eles tem a eternidade para isso, o tempo no paraíso não corre como aqui. Por isso inclusive que a burocracia - que foi inventada no paraíso e contrabandeada para a Terra - funciona, o tempo é outro, o tempo é nada. Uma fila não demora e não atrasa, uma fila é só uma fila. Mas estou fugindo do assunto principal que era Santo Antonio e seus assessores decidindo o imutável destino de duas pessoas.

Na versão #1 do roteiro ele era meio grosseiro e nunca puxou assunto com ela no Whatsapp e a coisa não foi pra frente desde o início. Na versão #2 ela que era muito ligada no físico e ignorou desde o começo o papo daquele cara gordinho. Aí fizeram a versão #3 onde os dois se achavam interessantes, mas apareceu alguém na vida dele e uma vez, já velho, ele lembrou do que poderia ter sido a vida com ela, mas não parou muito porque o neto dele estava com febre.

Namoraram na versão #4, #5 e #8, mas em nenhum deles chegaram a casar, só na versão #7. Mas em todos esses se separaram por um Mestrado na Alemanha que ela ganhou. Na versão #9 foi ele que tirou um tempo sabático na Alemanha e quando voltou ela já não queria saber dele.

Na versão #10 os roteiristas consideraram que em 2014 quem venceu a eleição foi o Pastor Everaldo então sinceramente não tem nada nesse roteiro que preste para alguma coisa. Na versão #11, #12, #13 e #14 tiveram filhos, mas na #13 não foi uma gravidez planejada, nem eram casados, deu uma treta. Na #15 os dois eram muito emotivos e choravam por qualquer coisa e um morreu afogado nas lágrimas do outro.

Nas versões #16, #17, #18, #19 e #20 respectivamente ele morreu antes de conhecê-la; ela morreu antes de conhecê-lo; o Neymar morreu no meio da Copa antes deles se conhecerem e ninguém teve clima para romance no Brasil; ela era lésbica; ele era bi mas só namorava homem e por fim eles eram irmãos e só faziam brigar o tempo todo.

Na versão #21 ela era a treinadora do time de Baseball do Elementary School of Rounderville, ele era o Superintendente de educação do distrito e pretendia demolir o campo para construir um shopping e arrecadar fundos para os colégios da região, e a única saída para evitar isso era o time vencer o campeonato nacional e com o prêmio salvar o campo. O que começou como uma relação conflituosa inexplicavelmente passou a ser de afeto por causa de um cachorro labrador fofo e o romance foi assumido de vez quando o cachorro fez o Home Run e garantiu o título para o time da escola. Só que acabaram resolvendo usar esse roteiro para um filme da Sessão da Tarde.

Na versão #22 ela ficava chamando ele de idiota o tempo todo e os roteiristas sentiram que o caminho era por ali, mas faltava algo mais. Na #23 ele era dez anos mais novo que ela e morava em Santos-SP. Ela tinha 30 e estava farta da vida achando que nada mais podia fazê-la sorrir, se achava feia. Ele sabia que podia ser feliz com ela mas só desistiu no caminho porque era um homem de 20 anos e a única função de um homem de 20 no mundo é fazer merda.

A versão #24 envolvia Aliens e Lars Von Trier com Win Wenders, confesso que não entendi muito bem para explicar para vocês, mas eles terminavam juntos, ou os clones deles terminavam juntos, algo assim. A versão #25 era um musical, as letras eram até boas mas as harmonias nem tanto, não deu liga. A #26 e #27 tentaram uma narrativa mais alternativa, a ideia era boa mas o grande público não comprou a ideia, pelo menos a versão #27 ganhou diversos prêmios em festivais.

Em todas menos na #28 ela era baixinha, mas na #28 ela tinha um e oitenta e se vangloriava um pouco demais disso. Em todas menos na #29 ele era feio, mas na #29 ele virou Colírio da Capricho na adolescência e ficou meio esnobe depois disso, e os roteiristas perceberam o que significava a frase "Deus não dá asa para cobra"

Da #30 em diante não tive paciência para ler, o tempo pra mim funciona, não dava mais, não sou um ser divino para ter paciência divina de ler as outras 534 versões anteriores até a final.

Enquanto isso, no versão_final.pdf, ela via um meme na internet, ria, lembrava dele, mas não sabia se queria compartilhar com ele ou não. E ele sentou na cama, pegou o Whatsapp, apertou o botão de áudio e disse "Oi bebê, você é linda, tô sentindo a sua falta, te amo. Se você quiser eu to aqui. Não sei quanto tempo, não sei o quanto, só sei do agora e do agora queria a sua cabeça encostada no meu peito, dividindo o edredom nesse frio. Você está distante na vida mas perto do meu coração para sempre". Ficou mais uns dois segundos com o botão apertado e deslizou para a direita, cancelando o envio. "Melhor relaxar indo escrever alguma coisa", pensou.