segunda-feira, 30 de maio de 2016

O Dedo Quebrado

— Doutor, nem sei como explicar isso direito.
— Tenta pelo começo.
— Ok Doutor, veja bem: Quando eu tinha 11 anos eu estava jogando de goleiro. Pulei errado e a bola bateu na mão de um jeito que quebrei o dedo.
— Hm, mas isso foi a uns 20 anos não é?
— Sim Doutor, mas olha: aos 12 anos eu escorreguei no chão molhado e caí sentado de bunda com toda força. Até fez um barulhão, Doutor. Fiquei com a bunda toda roxa.
— Hm.
— Doutor, nesse dia aconteceu de quebrar o mesmo dedo de novo.
— Ele também bateu no chão?
— Não! Ele nem encostou!
— Como isso foi possível?
— Pois é, eu não sei! Eu não sabia o que tinha acontecido de errado até que aos 14 bati com a testa numa quina de ar condicionado. Além de fazer um galo bem forte eu estava de novo com o quadril todo roxo e o dedo quebrado!
— Mas você caiu no chão?
— Nada, fiquei super de pé Doutor! Mesmo com toda a dor no quadril eu tava total de pé!
— Eu não consigo entender...
— Nem eu né, Doutor? Aos 16 eu tomei um choque de um fio desencapado que deram mole numa reforma. Caí no chão já com dor no quadril, com um galo na cabeça e novamente com dedo quebrado. A cada novo acidente voltam todos os outros!

O Doutor ficou um tempo em silêncio. Todos esses anos e nunca havia ouvido nada parecido. Pela primeira vez na carreira não sabia nem por onde começar. Que especialista consultar. Qual livro procurar. 

— Meu caso é grave, não é?
— Seu caso é único.

Pediu uma bateria de exames. Exame de sangue: colesterol um pouco alto, mas ok. Exame de fezes e urina: ok. Ultrassonografia: ok. 

— Não há nada de errado com você!
— E como você explica isso?

Ele havia recentemente batido com o dedão no pé de mesa, e foi no consultório do Doutor com o dedão roxo, com os pelos arrepiados de um choque, um galo na cabeça, dor no quadril entre outras coisas, além de um dedo quebrado. 

O Doutor olhava para o paciente. Não conseguia ver nada de errado. 

Era isso: não era possível ver.

Foi para os escritos, formatou a tese e passou dias e dias escrevendo tanto que até passou a ter barba. 

Escreveu o Doutor:

"A dor é o reflexo físico de um sentimento. O acidente em si não causa a dor. A dor está ali como um alarme, um aviso escandaloso do corpo para avisar que se aquele corte não fechar nós vamos sangrar até morrer. Se não tirarmos a mão do fogo as chamas nos consumirão até virarmos carvão. Não tiramos a mão do fogo porque ela irá virar carvão, tiramos porque sentimos a dor da queimadura"

Sentiu que o caminho era por ali e continuou:

"Nós traduzimos esse alerta como dor. E a dor simboliza também outros impactos e perdas. Quando alguma pessoa querida morre nós dizemos que sentimos a dor da perda. Ora, nada nos atingiu fisicamente, então porque traduzimos algo assim como dor? Porque o nosso cérebro colocou o mesmo alarme para tudo de ruim. E para nosso azar evolutivo nosso cérebro é medroso o bastante para colocar alarme em tudo. O que nós somos é o medo de perder tudo, então sentimos dor constantemente."

Acendeu um cigarro. Sim, médicos não deviam fumar, mas casa de ferreiro, espeto de pau.

"Quantos galos na cabeça não se chamam 'Soraya não liga pra mim'? Quantas pessoas foram eletrocutadas por um 'Gabriela simplesmente me trocou'? Aquele escorregão é mesmo um escorregão ou aquele chão molhado se chama 'Thais perdeu totalmente a confiança de que nossa relação tem futuro'?

Toda vez que sentimos algo parecido precisamos revirar de alguma forma esse baú de neurônios onde guardamos sentimentos iguais. E reviramos juntos essas dores anteriores. É como retirar o curativo de um machucado que nunca sara."

Era aquilo. Faltava a posologia. Chamou o paciente. Explicou tudo ao paciente, suas novas teses, as sinapses e associações entre neurônios. As comparações de como galos na cabeça, choques e escorregões eram Cecílias, Isas e Julias.

— Tá — disse o paciente — Mas e meu caso, como a gente resolve?
— É brilhantemente fácil. Você está com o dedo quebrado.
— Impossível Doutor. Fizemos o exame, tudo está ok com ele já, exceto quando acontece alguma outra coisa.
— Não não não — o Doutor balançava o dedo com ar professoral — não podemos confundir o fato de não ver o problema com o fato de o problema não estar lá. O fato de que vemos o seu osso perfeitamente calcificado não pode ser determinante no fato de saber que seu dedo ainda está quebrado. É preciso deixar claro que cada choque, cada pancada e cada Laura fazem parte dentro da sua cabeça de um mesmo baú de reações e que ativar um, inclusive os novos, significa ativar todos numa reação em cadeia demoníaca de dor.

O Doutor fez uma ênfase meio teatral quando disse 'demoníaca'.

— Deixa eu ver se entendi. É tipo um cachorro de uma casa numa rua. Quando um começa a latir todos os outros cachorros da rua seguem o latido por toda a noite?

O Doutor estalou os dedos na frente dele em sinal de alegria.

— Bingo! Excelente, você já está pronto para a cura.

O tratamento, se é que se poderia chamar assim, era estupidamente óbvio e ao mesmo tempo estupidamente difícil. Consistia em entender tal qual Freud que um cachimbo era só um cachimbo. O paciente lutou para entender que um choque era só um choque, uma Marília só uma Marília, um escorregão não passava de um mero escorregão e que uma Paula é o que é, uma Paula.

E que nenhuma dessas coisas tinha a ver com o fato de que aos 11 anos alguém chutou a bola e ele quebrou o dedo. Nem o galo na cabeça nem a Giuliana. Era preciso entender que nem sempre as coisas estavam tão relacionadas assim, e aos poucos o Paciente foi tirando as coisas daquela caixinha de dores e colocando cada uma no seu lugar adequado. Era verdade que aquele dedo um dia foi quebrado, mas não havia a mínima necessidade do dedo permanecer quebrado para sempre. Depois de muito tempo o paciente disse:

— Doutor, acho que finalmente estou curado.
— É preciso entender se com muita dor você já consegue separar as coisas e resistir.

O Doutor sacou uma pistola e deu um tiro certeiro no estômago do paciente.

O Paciente sentiu o impacto e o ardente da bala penetrar sua barriga. Logo aquele calafrio da perda de sangue absurda. Mas o quadril não doía, ficou esperando o choque que não veio. Tocou a própria testa e tremendo viu que não tinha aparecido galo nenhum ali. Estendeu a mão em direção ao Doutor e enquanto sentia uma absurda dor no abdômen mostrou para seu médico que conseguia mexer o dedo, que finalmente o dedo não estava mais quebrado.

— Toda dor é única — Disse balbuciando com dificuldade.
— Toda dor é única — Confirmou o Doutor.

O Paciente ajoelhou no chão, prestes a perder os sentidos. O sangue vazava em longos goles no ar.

— Parabéns — disse o Doutor — já posso te dar alta hoje.

Morreu sorrindo.

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