— Doutor,
nem sei como explicar isso direito.
— Tenta
pelo começo.
— Ok Doutor,
veja bem: Quando eu tinha 11 anos eu estava jogando de goleiro. Pulei errado e
a bola bateu na mão de um jeito que quebrei o dedo.
— Hm, mas
isso foi a uns 20 anos não é?
— Sim Doutor,
mas olha: aos 12 anos eu escorreguei no chão molhado e caí sentado de bunda com
toda força. Até fez um barulhão, Doutor. Fiquei com a bunda toda roxa.
— Hm.
— Doutor,
nesse dia aconteceu de quebrar o mesmo dedo de novo.
— Ele
também bateu no chão?
— Não!
Ele nem encostou!
— Como
isso foi possível?
— Pois é,
eu não sei! Eu não sabia o que tinha acontecido de errado até que aos 14 bati
com a testa numa quina de ar condicionado. Além de fazer um galo bem forte eu
estava de novo com o quadril todo roxo e o dedo quebrado!
— Mas
você caiu no chão?
— Nada,
fiquei super de pé Doutor! Mesmo com toda a dor no quadril eu tava total de pé!
— Eu não
consigo entender...
— Nem eu
né, Doutor? Aos 16 eu tomei um choque de um fio desencapado que deram mole numa
reforma. Caí no chão já com dor no quadril, com um galo na cabeça e novamente
com dedo quebrado. A cada novo acidente voltam todos os outros!
O Doutor
ficou um tempo em silêncio. Todos esses anos e nunca havia ouvido nada
parecido. Pela primeira vez na carreira não sabia nem por onde começar. Que
especialista consultar. Qual livro procurar.
— Meu
caso é grave, não é?
— Seu
caso é único.
Pediu uma
bateria de exames. Exame de sangue: colesterol um pouco alto, mas ok. Exame de
fezes e urina: ok. Ultrassonografia: ok.
— Não há
nada de errado com você!
— E como
você explica isso?
Ele havia
recentemente batido com o dedão no pé de mesa, e foi no consultório do Doutor
com o dedão roxo, com os pelos arrepiados de um choque, um galo na cabeça, dor
no quadril entre outras coisas, além de um dedo quebrado.
O Doutor
olhava para o paciente. Não conseguia ver nada de errado.
Era isso:
não era possível ver.
Foi para
os escritos, formatou a tese e passou dias e dias escrevendo tanto que até
passou a ter barba.
Escreveu
o Doutor:
"A
dor é o reflexo físico de um sentimento. O acidente em si não causa a dor. A
dor está ali como um alarme, um aviso escandaloso do corpo para avisar que se
aquele corte não fechar nós vamos sangrar até morrer. Se não tirarmos a mão do
fogo as chamas nos consumirão até virarmos carvão. Não tiramos a mão do fogo
porque ela irá virar carvão, tiramos porque sentimos a dor da queimadura"
Sentiu
que o caminho era por ali e continuou:
"Nós
traduzimos esse alerta como dor. E a dor simboliza também outros impactos e
perdas. Quando alguma pessoa querida morre nós dizemos que sentimos a dor da
perda. Ora, nada nos atingiu fisicamente, então porque traduzimos algo assim
como dor? Porque o nosso cérebro colocou o mesmo alarme para tudo de ruim. E
para nosso azar evolutivo nosso cérebro é medroso o bastante para colocar
alarme em tudo. O que nós somos é o medo de perder tudo, então sentimos dor
constantemente."
Acendeu
um cigarro. Sim, médicos não deviam fumar, mas casa de ferreiro, espeto de pau.
"Quantos
galos na cabeça não se chamam 'Soraya não liga pra mim'? Quantas pessoas foram
eletrocutadas por um 'Gabriela simplesmente me trocou'? Aquele escorregão é
mesmo um escorregão ou aquele chão molhado se chama 'Thais perdeu totalmente a
confiança de que nossa relação tem futuro'?
Toda vez
que sentimos algo parecido precisamos revirar de alguma forma esse baú de
neurônios onde guardamos sentimentos iguais. E reviramos juntos essas dores
anteriores. É como retirar o curativo de um machucado que nunca sara."
Era
aquilo. Faltava a posologia. Chamou o paciente. Explicou tudo ao paciente, suas
novas teses, as sinapses e associações entre neurônios. As comparações de como
galos na cabeça, choques e escorregões eram Cecílias, Isas e Julias.
— Tá —
disse o paciente — Mas e meu caso, como a gente resolve?
— É
brilhantemente fácil. Você está com o dedo quebrado.
— Impossível
Doutor. Fizemos o exame, tudo está ok com ele já, exceto quando acontece alguma
outra coisa.
— Não não
não — o Doutor balançava o dedo com ar professoral — não podemos confundir o
fato de não ver o problema com o fato de o problema não estar lá. O fato de que
vemos o seu osso perfeitamente calcificado não pode ser determinante no fato de
saber que seu dedo ainda está quebrado. É preciso deixar claro que cada choque,
cada pancada e cada Laura fazem parte dentro da sua cabeça de um mesmo baú de
reações e que ativar um, inclusive os novos, significa ativar todos numa reação
em cadeia demoníaca de dor.
O Doutor
fez uma ênfase meio teatral quando disse 'demoníaca'.
— Deixa
eu ver se entendi. É tipo um cachorro de uma casa numa rua. Quando um começa a
latir todos os outros cachorros da rua seguem o latido por toda a noite?
O Doutor
estalou os dedos na frente dele em sinal de alegria.
— Bingo!
Excelente, você já está pronto para a cura.
O
tratamento, se é que se poderia chamar assim, era estupidamente óbvio e ao
mesmo tempo estupidamente difícil. Consistia em entender tal qual Freud que um
cachimbo era só um cachimbo. O paciente lutou para entender que um choque era
só um choque, uma Marília só uma Marília, um escorregão não passava de um mero
escorregão e que uma Paula é o que é, uma Paula.
E que
nenhuma dessas coisas tinha a ver com o fato de que aos 11 anos alguém chutou a
bola e ele quebrou o dedo. Nem o galo na cabeça nem a Giuliana. Era preciso
entender que nem sempre as coisas estavam tão relacionadas assim, e aos poucos
o Paciente foi tirando as coisas daquela caixinha de dores e colocando cada uma
no seu lugar adequado. Era verdade que aquele dedo um dia foi quebrado, mas não
havia a mínima necessidade do dedo permanecer quebrado para sempre. Depois de
muito tempo o paciente disse:
— Doutor,
acho que finalmente estou curado.
— É
preciso entender se com muita dor você já consegue separar as coisas e
resistir.
O Doutor
sacou uma pistola e deu um tiro certeiro no estômago do paciente.
O
Paciente sentiu o impacto e o ardente da bala penetrar sua barriga. Logo aquele
calafrio da perda de sangue absurda. Mas o quadril não doía, ficou esperando o
choque que não veio. Tocou a própria testa e tremendo viu que não tinha
aparecido galo nenhum ali. Estendeu a mão em direção ao Doutor e enquanto
sentia uma absurda dor no abdômen mostrou para seu médico que conseguia mexer o
dedo, que finalmente o dedo não estava mais quebrado.
— Toda
dor é única — Disse balbuciando com dificuldade.
— Toda
dor é única — Confirmou o Doutor.
O
Paciente ajoelhou no chão, prestes a perder os sentidos. O sangue vazava em
longos goles no ar.
—
Parabéns — disse o Doutor — já posso te dar alta hoje.
Morreu sorrindo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário